Eixos da Curadoria
Mais uma vez, o grande desafio da curadoria da mostra Mulheres Mágicas foi escolher quais filmes seriam deixados de fora desse novo esforço de investigação das imagens da bruxa no cinema. O gesto historiográfico que orientou a construção da programação nos levou a constatar a diversidade de abordagens dessa figura; porém, para que fosse possível abraçar essas profícuas e variadas experiências, tivemos que abrir mão de produções tão provocativas e fascinantes quanto aquelas que foram selecionadas. Tal amostragem, portanto, não se pretende completa, ainda que tente dar conta de oferecer, ao público, alguns dos principais modos de representação da bruxaria na cultura audiovisual.
No primeiro eixo curatorial, o Lado A – “A bruxa através dos tempos: imagens clássicas”, exploramos os principais tropos que formam os arquétipos das bruxas, elaborados, principalmente, em produções inscritas no gênero do horror. A filha de Satã (1962), de Sidney Hayers, é um exemplar dessa fecunda tradição no cinema britânico, que se destacou sobretudo a partir dos anos 1960. Nessa mesma época, do outro lado do Atlântico, o cinema mexicano também mergulharia nessas tendências. O espelho da bruxa (1962), de Chano Ureta, nos introduz a uma personagem vingativa, que ambiciona abalar as certezas de um mundo governado por homens. A vingança é o mote de outra obra inarredável que integra nossa programação: Viy - O Espírito do Mal (1967), de Konstantin Yershov e Georgi Kropachyov, é um dos filmes mais importantes do cinema de horror soviético, baseado no conto homônimo de Nikolai Gogol. O celebrado A bruxa (2015), de Robert Eggers, apresenta uma visão contemporânea de mulheres aliadas a forças demoníacas. Mas talvez a mais cruel de todas seja aquela que amaldiçoa um jovem casal em A Praga (2021), obra póstuma do maior nome do terror brasileiro, José Mojica Marins. O filme é acompanhado do curta-documentário A última praga de Mojica, de Cédric Fanti, Eugenio Puppo, Matheus Sundfeld e Pedro Junqueira, que esmiúça o último longa do lendário Zé do Caixão. Em outro recorte, A paixão de Joana D’arc (1928), clássico do cinema mudo dirigido pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer, e As feiticeiras de Salém (1957), de Raymond Rouleau, o primeiro a adaptar para o cinema a famosa peça de Arthur Miller, ignoram estereótipos para atualizar processos históricos de caça às bruxas. Já Casei-me com uma feiticeira (1942), de René Clair, consolidou-se como uma inspiração matricial para um outro nicho de produções, que apostaram na comédia romântica para projetar a bruxa como um símbolo de fantasia e sedução.
As sessões infantis, por sua vez, retomam as bruxas dos contos de fadas, tanto em suas versões mais amedrontadoras - como a madrasta de A Branca de Neve e os Sete Anões (1937), de David Hand, Perce Pearce, William Cottrell, Larry Morey, Wilfred Jackson e Ben Sharpsteen - quanto em suas recentes releituras - como a Malévola de Angelina Jolie, na versão de Robert Stromberg (2014) de A bela Adormecida, ou a adolescente encantadora de Os serviços de entrega da Kiki (1989), de Hayao Miyazaki, dos Estúdios Ghibli. Também temos o prazer de trazer ao público infantil A fada do repolho (1986;1900), de Alice Guy, considerado o primeiro filme dirigido por uma mulher e um dos primeiros de ficção narrativa.
Já o segundo eixo da programação, o Lado B – “Bruxas contemporâneas: corpos indomáveis, saberes ancestrais”, se volta para sujeitos que encarnam o perigo dos tempos, expandindo a ideia das mulheres mágicas. Alguns filmes subvertem noções hegemônicas de monstruosidade, como Medusa (2023), de Anita Rocha da Silveira; outros investem em novas reflexões sobre a caça às bruxas, considerando perseguições hodiernas e para além da Europa, como Yaaba (1989), de Idrissa Ouédrago, A mãe do rio (1995), de Zeinabu irene Davis, e Wil-o-Wisp (2018), de Rachel Rose. Se a magia não está explícita na superfície de obras tão distintas como Retrato de uma jovem em chamas (2019), de Céline Sciamma, Orlando, minha biografia política (2022), de Paul B. Preciado, Abjetas 288 (2020), de Júlia da Costa e Renata Mourão, Para sempre condenadas (1987), de Su Friedrich, República do Mangue (2020), de Julia Chacur, Mateus Sanches Duarte, Priscila Serejo, Cosas de Mujeres (1978), de Rosa Martha Fernández, e Laocoonte e seus filhos, de Ulrike Ottinger e Tabea Blumeschein, ela está entranhada nas resistências que suas imagens costuram e elevam. São obras que falam dos corpos dissidentes e dos desejos fora da norma, que trazem e rebeldia insubmissa de quem se recusou a sucumbir nas chamas de persistentes e crueis inquisições. Por fim, trabalhos como Mami Wata (2022), de C. J. ‘Fiery’ Obasi, Simpósio Preto (2022), de Katia Sepúlveda, Resiliência Tlacuache (2019), de Naomi Rincón Gallardo e Rami Rami Kirani (2024), de Lira Mawapai HuniKuin e Luciana Tira HuniKuin, apontam para as possibilidades emancipatórias de reencantamento do mundo. Não falamos de filmes que embarcam em um simples retorno ao passado; nas palavras de Silvia Federici, eles nos convidam a ampliar os horizontes do discurso e da política “dos comuns”, para que possamos “recuperar o poder de decidir coletivamente nosso destino na Terra”
REFERÊNCIA:
FEDERICI, Silvia. Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns. São Paulo: Elefante, 2023.
LADO A:
A bruxa através dos tempos: imagens clássicas
SESSÃO 1. Caça às bruxas
de Carl Theodor Dreyer (1928, França)
SESSÃO 2. Feitiços do amor
de René Clair (1942, EUA)
SESSÃO 3. Caça às bruxas
de Raymond Rouleau (1957, França)
SESSÃO 4. Contos de bruxas
de Chano Urueta (1962, México)
SESSÃO 5. Contos de bruxas
de Sidney Hayers (1962, Reino Unido)
SESSÃO 6. Contos de bruxas
de Konstantin Yershov e Georgi Kropachyov (1967, Rússia)
SESSÃO 7. Contos de bruxas
de Robert Eggers (2015, EUA)
SESSÃO 8. Encarnação do mal
de Cédric Fanti, Eugenio Puppo, Matheus Sundfeld, Pedro Junqueira (2021, 17 min, Brasil)
de José Mojica Marins (2021, Brasil)
INFANTIL:
SESSÃO 9. Infantil
de Alice Guy (1896/1900, França)
(1937, EUA)
SESSÃO 10. Infantil
de Hayao Miyazaki (1989, Japão)
SESSÃO 11. Infantil
de Robert Stromberg (2014, 97 min, EUA)
LADO B:
Bruxas contemporâneas: corpos indomáveis, saberes ancestrais
SESSÃO 12. Caça às bruxas contemporânea
de Idrissa Ouédraogo (1989, Burkina Faso)
SESSÃO 13. Esses corpos insubmissos
de Céline Sciamma (2019, França)
SESSÃO 14. Esses corpos insubmissos
de Paul B. Preciado (2022, França)
SESSÃO 15. Reencantar o mundo
de C. J. ‘Fiery’ Obasi (2022, Nigéria)
SESSÃO 16. Contos de bruxas
de Anita Rocha da Silveira (2023, Brasil)
SESSÃO 17. Feiticeiras, nossas irmãs
de Zeinabu irene Davis (1995, EUA)
de Júlia da Costa, Renata Mourão (2020, Brasil)
de Su Friedrich (1987, EUA)
SESSÃO 18. Feiticeiras, nossas irmãs
de Rachel Rose (2018, EUA)
de Katia Sepúlveda (2022, Rep. Dominicana / Alemanha)
de Julia Chacur, Mateus Sanches Duarte, Priscila Serejo (2020, Brasil)
de Rosa Martha Fernández (1978, México)
SESSÃO 19. Feiticeiras, nossas irmãs
de Lira Mawapai HuniKuin e Luciana Tira HuniKuin (2024, Brasil)
de Naomi Rincón Gallardo (2019, México)
de Ulrike Ottinger e Tabea Blumeschein (1973, Alemanha)